De: Mônica Lopes de Mendonça
Nayara,
minha pequena estrela.
Quando
ela nasceu foi uma festa, um milagre. Primeiro porque eu já tinha onze anos,
segundo porque minha mãe teve uma gravidez difícil. Mas a nossa menininha
nasceu e eu e meu irmão tínhamos uma bebê em nossa casa.
Eu
que sempre amei crianças e bebês, não podia estar mais feliz com aquela
menininha pequenina e muito fofa, com olhos castanhos e rostinho de boneca. A
partir daquele dia, as bonecas perderam meu colo, porque passou a estar sempre
tomado por uma bonequinha de verdade que chorava, muito, dias e noites, mas eu
não me importava. Dividíamos o mesmo quarto e eu sempre acordava a noite ia até
o berço me certificar que ela estava bem, respirando e com fralda limpa e bem
quentinha.
Eu
já tinha cuidado de primas menores, de filhos de vizinhos, meu instinto
maternal e de responsabilidade chegaram muito cedo, quer dizer, acho que já
nasci com ele muito aflorado. Então eu ajudava minha mãe a cuidar dela o tempo
todo quando não estava na escola ou fazendo minhas tarefas.
Cuidar
dela era meu passatempo preferido, o momento perfeito. Ela foi crescendo e
sempre fomos ligadas uma na outra. Eu a ensinei a dar os primeiros passos, e
jamais esquecerei quando ela deu seus passos sozinha em minha direção. Foi uma
grande vitória para ela, uma alegria imensa para mim.
Quando
mais ela crescia, mais eu me responsabilizava por ela e mais ela se ligava a
mim, éramos amigas, confidentes, irmãs. Muitas vezes quando a levava comigo aos
lugares achavam que era minha filha, principalmente porque me chamava de “Mon”, então as pessoas entendiam mãe. E nós
duas ríamos e nos divertíamos com isso. Eu me sentia importante e ela achava
graça.
Ela
era uma menina esperta, inteligente, divertida e muito independente. Era muito
corajosa e parecia ter sempre muita pressa, em viver, se divertir, em cativar a
todos ao seu redor. Ninguém sabia o segredo que sua alma carregava, um segredo
de que o tempo para ela seria curto demais e por isso ela precisava aproveitar
cada minuto, dia, momento.
Eu
sentia por ela um amor tão imenso, parecia que eu sabia que precisava estar com
ela o máximo que eu pudesse, meu ritual de sempre verificar a noite se ela
dormia bem, eu ficava analisando o rostinho dela, como se quisesse decorar cada
pintinha, ela tinha uma no centro da bochecha, uma maiorzinha que se destacava,
como uma marquinha registrada de que eu sempre lembraria dessa lua em meio ao
céu da sua bochechinha rosada, e mesmo que já não fosse uma bebê, agora já uma
menina, nunca deixou de ser a minha bonequinha.
E
algumas vezes eu brigava, tinha que fazer isso, muitas vezes ela conseguia me
irritar, afinal, qual irmã nunca briga? Eram poucas, confesso, eu não tinha
como brigar porque eu a mimava, isso eu tenho certeza, mas tentava ensinar.
Quando ela queria protestar contra uma bronca pelos brinquedos desorganizados
pela casa, ou o quarto que dividíamos e que às vezes ela deixava parecendo que
um tornado havia passado por lá, mandava fazer a tarefa de casa antes de sair
para brincar, ela fechava a carinha, cruzava os braços, fazia bico e dizia que
eu era a “madrasta má”. E por dentro eu ria, mas por fora ainda fingia que
estava brava por ela não obedecer.
Nós
mudávamos muito de casa e de cidade, isso fazia com que eu e meus irmãos ficássemos
muito próximos e como eu era a mais velha dos três, eu procurava defendê-los,
protegê-los. Para nós era sempre um grande desafio, cidade nova, escola nova,
amigos novos, apenas por um tempo, até a próxima mudança.
E
chegando naquela idade em que temos que começar a trilhar nossos próprios
caminhos, eu resolvi mudar de cidade, retornar àcidade em que nascera, para
trabalhar, estudar e ficar perto do meu noivo que havia ficado lá. Brasília
sendo perto de Goiânia, praticamente todos os finais de semana eu estava em
Goiânia para ficar com eles, fiquei muito tempo vivendo aqui e lá.
Eu
com meus dezenove, ela ainda com seus oito anos, essa nossa separação durou
pouco tempo, pois logo minha família resolveu retornar para Brasília, assim os
anos foram se passando, para nós um tempo que passava devagar, para ela, um
tempo que passava rápido demais. Comemorávamos cada aniversário, podia ser
apenas um pequeno bolo, mas ela soprava as velinhas.
E
mais uma vez eu tive que ficar longe, mais uma vez ela estava em Goiânia e eu
em Brasília. Ela agora quase uma mocinha, com seus onze anos, eu com meus vinte
e dois, descobrindo como era o mundo que eu sempre sonhei em conhecer,
trabalho, amigos, morar sozinha com uma amiga em um bom apartamento em minha
cidade natal.
Naquela
época não havia internet como temos hoje, serviço celular estava se
transformando de analógico para digital. Nossas ligações era uma vez por
semana, mas ainda lembro-me da voz dela me ligando, para contar suas aventuras,
seus segredos, as brigas com amigas, com nossa mãe, com nosso irmão, com o
menino que gostava na escola. A sua voz e a sua gargalhada alegre ainda consigo
escutar, estão presentes na minha mente, no meu coração. E todos os finais de
semana eu continuava mantendo meu ritual de passar pelo menos três finais de
semana com ela em Goiânia e com minha família.
Infelizmente
não sabemos o que o futuro reserva, mas as coisas acontecem, não sabemos o
motivo. Ela que sempre foi saudável, esperta, ficou doente de repente. Uma dor
de cabeça estranha, forte, enjoos. Eu estava lá, mas meu coração estava em
Goiânia e ao saber que estava doente eu me desesperei.
Os
médicos descobriram um tumor agressivo no cérebro dela, maligno. E o tempo que
passava tão rapidamente para ela, passou a ser imprescindível e valioso.
Começava uma guerra, uma batalha desleal, dolorosa, mortal. Os efeitos do
crescimento acelerado eram questão de um dia para o outro, eram médicos,
exames, tratamentos. Muitos ajudavam: amigos, parentes e desconhecidos que
tamanho o nosso desespero se compadeciam. Anjos apareciam no caminho, vários,
sem asas, mas com um grande coração. Eu me desdobrava, trabalhava muito para
conseguir pagar despesas com viagens, médicos, hospitais, porque tínhamos que
tentar de tudo, enquanto meus pais se mantinham cuidando dela. Minha mãe não
saia de perto dela um minuto. Logo nos primeiros dias, ela ficou com o lado do
corpo paralisado e não conseguia mais andar, e quase não falava mais com
dificuldade por ter ficado com paralisia facial. Assim aprendi a entender um
olhar, ouvir um gesto e o valor de um sorriso.
O
tempo é muito ambíguo, lidávamos com dois tipos dele, o que era agressivo e
implacável, outro que demorava principalmente quando há uma luta desse tipo.
Quanto mais tentássemos tudo possível para conseguir o necessário para ela
ficar mais tempo aqui, o tumor crescia e o tratamento a levava mais rapidamente
de nós.
Seis
meses que passaram rápidos demais e ao mesmo tempo uma eternidade, fez uma
pausa, uma colisão entre duas realidades. Nunca imaginei que uma criança
pudesse suportar tanta dor como eu presenciei, é desumano, cruel, impossível
para quem nunca viveu compreender. Mas em nenhum momento eu ou qualquer um ao
lado dela nessa breve e dolorosa jornada ouviu uma palavra de desânimo,
tristeza ou inconformismo da parte dela, parecia que ela é quem estava cuidando
de nós, preparando-nos para sua partida e não ao contrário. Não reclamava,
nunca a vi chorar.
No
último mês dessa batalha, quando não havia mais nada o que pudéssemos fazer,
nem os médicos, tudo o que podíamos era nos preparar para a despedida e
aproveitar os últimos momentos. Chegou seu aniversário de doze anos. Ela estava
internada. Eu comprei sua torta preferida de chocolate, levei para o hospital.
Ela não podia comer, era apenas simbólico, mas não importava, levei as
velhinhas, e eu e minha mãe cantamos parabéns para ela, as mães das outras
crianças internadas e as enfermeiras se uniram a nós. Logo que ela soprou as
velas, a torta foi levada. Ela estava feliz, mesmo que naquela cama, eu via isso
em seus olhos, em seu meio sorriso.
E
por mais que o nosso egoísmo terreno queira agarrar aqueles que amamos com
todas as forças do nosso ser ao nosso lado, chega a um ponto que esse
sentimento desaparece e o que querermos é que o nosso ser amado seja libertado
da dor, do desespero, do cativeiro. Que como ela mesma na minha última visita
na uti disse para mim balbuciando antes de partir:
“Eu
preciso ir e ser feliz”.
Então,
Dezenove dias após seu aniversário, nossa estrelinha foi libertada retornando
ao Céu onde pertencia.
Em
seus doze anos aqui entre nós, ela me ensinou o valor do tempo, a força da
esperança, a sabedoria em aceitar com amor e dignidade o que precisamos
viver. E que algumas vezes a batalha
pode parecer ter sido perdida, mas não, ela só foi vencida de forma diferente.
Sua passagem não foi em vão.
Hoje
eu consigo escrever esse trecho tão importante da minha vida, não mais com
tristeza, dor e desespero, mas com uma grande e imensa saudade...
Para a minha irmãzinha que sempre fará falta na minha vida S2