Esse post de hoje é para quem acredita em anjos ou não. Para quem algumas vezes se vê desiludido e não imagina o quanto é importante.
Espero que gostem, é um pouco comprido, mas vale a pena.
Minha condenação
Mônica Lopes
Perceber que o mundo era diferente do que eu pensava, isso eu já tinha percebido e nos muitos momentos de solidão eu percebi também que tudo é capaz de passar, assim como as dores, assim como as felicidades, assim como os amores.
Acredito que é desnecessário dizer que com o sofrimento se cresce, deve ser por isso que os grandes homens geralmente tiveram grandes catástrofes em suas vidas.
Olhando para a janela e vendo o dia chuvoso e frio lá fora, cinza como a cortina de fumaça que habitava minha alma naqueles dias solitários, eu me deparava com a imagem de mim mesma refletida no vidro da janela. Aquela forma humana decadente e triste seria eu? Olhos inchados e vermelhos, como um zumbi sem rumo. Será que uma prece seria o suficiente para afastar meus medos e as minhas inseguranças? E se para esse medo de mim mesma não pudesse haver cura. Quem poderia me proteger de mim mesma? Eu seria meu próprio algoz? Meu júri, meu juiz e meu executor? Que pecados tão abomináveis teria eu cometido para me julgar assim tão cruel e sem perdão? Por que me julgava insistentemente sem ter qualquer motivação para dar-me a própria absolvição?
Não precisava da liberdade do corpo, apenas a liberdade da alma, apenas uma razão para acreditar que talvez eu tivesse uma chance, apenas uma para modificar aquilo que não poderia ser modificado. Apenas uma chance para poder arrancar de dentro de mim aquilo que já não me pertencia mais. A autorização para simplesmente destruir o que incomodava o que fazia mal, o que se enraizou e fez com que tudo se transformasse em dor, em solidão, em sofrimento.
Automaticamente tentando encontrar saídas para uma estrada de mão única, será que as jornadas seriam tão curtas assim? Tanta espera por alguma coisa realmente interessante na minha vida, mas jamais acontecera ou chegaria a acontecer. Será que viver seria simplesmente um ato breve de inspirar e expirar?
Algumas pessoas eram destinadas, uma série de explicações lógicas para o fato de que algumas eram merecedoras de vidas importantes, cheias de aventuras e histórias para contar para seus próprios filhos, depois netos. Uma vida interessante, capaz de fazer das menores insanidades, as mais divertidas aventuras. Possível mesmo seria que alguém acordasse de manhã e não pensasse em dormir novamente, porque assim era eu, acordando de manhã já esperando pela noite para dormir novamente.
Por quê?
Porque dormir era a minha maior aventura, o momento em que me encontraria livre de tudo o que fazia mal. Eu simplesmente vivendo, aventuras, romances, diversas vidas, diversas épocas. Uma coleção de fatos altamente atraentes. Fuga da realidade? Talvez sim, porque a realidade sempre fora um vidro fumê, sem qualquer atrativo.
O silêncio era tanto que eu podia ouvir o som das minhas lágrimas caindo sobre o papel no chão. Fotos, recordações, bilhetes, onde estariam as pessoas do meu passado? Lembrariam de mim? Ou apenas em suas vidas fui um simples ponto de um i?
Olhei novamente para o punhal no chão à minha frente, escolhido cuidadosamente, não poderia haver falhas, aquele era um bom dia para dormir profundamente, viver no mundo dos sonhos por toda a eternidade, sem dor, sem solidão, apenas vivendo no mundo colorido e divertido da imaginação. A dona da loja nem imaginara o que acabara de fazer ao mostrar-me aquele punhal dourado com duas pedras vermelhas, imitando dois olhos de rubi, era perfeita, altamente afiada e pontiaguda, seriam apenas dois cortes, apenas dois e a libertação.
Testei-o cortando um pedaço de papel, sim, ele era o escolhido, assim como o dia. Ninguém sentiria muito a minha falta mesmo. Minha mãe, com certeza, teria uma crise de loucura, mas isso duraria apenas algum tempo, depois acabaria se conformando, meu pai também, o restante das pessoas que me conhecia, iriam ao velório, falariam de mim, ou talvez apenas exclamassem algumas poucas palavras de fingida comoção, depois iriam embora viver suas vidas e em menos de uma semana, eu apenas existiria por uma inscrição em uma lápide fria e sem graça, assim como fora minha vida.
Peguei o punhal cuidadosamente, como uma grande relíquia, estava preparado, juntamente com a bacia de água, assim não haveria tanta sujeira, não queria uma cena macabra, nem aterrorizante, queria apenas dormir. A camisola também escolhida, branca, assim ficaria com um rosto mais angelical, ou talvez porque eu havia sempre guardado aquela camisola de renda e cetim branca para uma noite especial que nunca chegara, aquele era o momento especial, o momento de dormir para sempre.
Ouço a chuva recomeçar forte lá fora, um arrepio percorre a minha espinha, seria o céu chorando pelo meu ato? Seria um aviso de que eu iria direto para o inferno como sempre pregara a igreja? Pouco me importava, o inferno pelo menos deveria ser mais divertido do que a minha vida, qualquer coisa seria melhor do que viver como um simples vegetal. As velas acesas à minha volta de repente dançavam como se um vento as acariciasse, como se o barulho da chuva fosse uma doce música que as fazia dançar como bailarinas. O cheiro da parafina queimada enchia os meus pulmões, enquanto eu esperava o momento exato para praticar o último ato de uma vida.
- Sabe qual é seu maior problema? – Ouvi uma voz desconhecida masculina falando no quarto, meu coração disparou, quem poderia ter entrado no meu quarto? Não havia barulho, tinha a certeza que a porta da sala estava trancada. Eu não tinha coragem de me mexer, estava apavorada. Não esperava que alguém estivesse ali comigo, principalmente alguém que eu não conhecia.
- O que foi, está com medo? De quê? Para quem está prestes a cometer esse ato que você está, o medo não deve fazer parte. – A voz falou novamente.
Fechei os olhos, como se isso pudesse me proteger. Um gesto inconsciente de proteção, assim como fazemos quando crianças que fechamos os olhos e achamos que estamos bem escondidos e que nossos pais não irão nos encontrar.
- Quem é você? – Perguntei, quase que em sussurro. As palavras saiam com dificuldade.
- Isso importa? – Ele perguntou com a voz suave, mantendo sempre o mesmo tom.
- Importa.
- Sabe qual é seu maior problema? – Repetiu a primeira pergunta novamente.
- Quem é você? – Perguntei novamente, agora com um pouco mais de força, se ele quisesse fazer alguma coisa ruim, já teria feito. Abri os olhos, mas sem coragem de olhar para trás.
- Seu maior problema é ter tanta pena de si mesma que fica cega diante das bênçãos que acontecem a você.
- Quem é você para entrar na minha casa e vir falando de mim? – Falei olhando para trás, olhando pelo quarto, mas não havia ninguém, isso me apavorou, principalmente quando as velas novamente mexeram todas para o mesmo lado, uma brisa que vinha de lugar algum passou, e juntamente com as velas meus cabelos balançaram. Olhei diretamente para a janela, ela estava fechada. Segurei o punhal com força na minha mão. O que antes serviria para por fim à minha vida, agora seria minha arma de proteção.
- Por que não faz o que quer fazer? Eu vou assistir e ver o quanto é covarde. Achei que você fosse mais forte.
- Eu não quero testemunhas, além disso, você é apenas a minha imaginação, não passa da minha consciência pregando peças, os conceitos incluídos em minha mente por uma sociedade e por uma religião hipócrita. Eu não acredito mais em nada a não ser em mim mesma.
- Não parece. Sabe o que eu penso? Que tem tanto medo da sua potencialidade que acha que fugindo não será cobrada, mas está enganada, desistindo da luta, será apenas uma desertora e desertores não são bem vistos, sabe por quê? Porque são covardes.
- Eu não sou covarde. Se eu fosse, eu não teria coragem de me matar.
- Morrer é fácil, difícil é viver.
- Você quem diz, eu sei o que é viver assim, como um vegetal.
- Vegetal? – Senti que ele sorriu. – Você não é um vegetal. Você é perfeita, tem saúde, é até bonita, é inteligente. Apenas tem pena de si mesma, o que a deixa sem qualquer motivação para viver. O mundo está lá fora, você é quem se tranca dentro de você mesma. Você tem as respostas, ainda não aprendeu a fazer as perguntas, esse é o problema.
Pensei por alguns instantes sobre o que ele disse. Ele teria razão? Eu estava perdendo realmente a razão, estava conversando com alguém que não existia.
- Você me fala de coragem, então porque não se mostra? Quem é você e porque está aqui? – Perguntei em tom desafiador.
A voz ficou muda por alguns instantes, mas eu podia ouvir sua respiração. As velas novamente dançaram, e dessa vez, eu já não tinha mais medo.
- Estou aqui por você. – Respondeu, mantendo sempre um tom macio na voz.
- Por mim? Eu não chamei ninguém.
- Não mesmo?
- Não.
- Deixe que eu veja você, se isso for uma brincadeira, deixe-me fazer o que estou pronta para fazer.
- Ainda quer fazer?
- Quero. – Falei, mas a minha voz, não saiu tão forte quanto eu esperava, estava vacilante. E não havia mais tanta convicção.
- Então ainda se julga uma coitadinha? Pobrezinha, ninguém a ama, não tem amigos, não tem motivação. Que vida cruel! – Zombou, mesmo mantendo o mesmo tom calmo na voz.
- Isso mesmo, eu sou um zero a esquerda.
- Você já pensou em amar as pessoas primeiro? Já pensou em ajudar as pessoas primeiro antes de querer ajuda? Quantas pessoas estão por aí precisando de um abraço, de uma mão amiga, quantas pessoas precisam de um pedaço de pão, não o pão material, mas o pão do amor. O quanto você pode fazer pelos outros ao invés de ficar aí vegetando. Você tem duas mãos, duas pernas, quantos não dariam tudo para poder andar, para poder abraçar alguém! Quantos dariam qualquer coisa para poder enxergar apenas de um olho, ou mesmo poder enxergar só um pouquinho a luz. Quantos sonham em poder falar uma palavra, ou mesmo ouvir o barulho de uma chuva, o som de um sorriso. Você me fala de vegetar, mas quantos estão nos leitos dos hospitais imóveis em coma querendo que seus corpos reajam para voltar a viver, ou mesmo que estão acordados, mas por algum motivo seus corpos não atendem e vivem dependendo das outras pessoas para tudo, porque a única coisa que podem fazer é fechar e abrir os olhos.
- Mas devem ter feito alguma coisa para Deus os punir. – Falei sentindo meu coração doer pelo que ele havia falado, eu não havia pensado nisso. Senti vergonha do que eu acabara de dizer.
- Deus não pune os homens, eles mesmos se punem, ou se escondem atrás de erros como o que você quer cometer. A vida é uma dádiva, um presente, uma chance de fazer as coisas darem certo. Quantos não têm essa chance? Quantos são abortados antes de nascer, antes de poder conhecer o nascer do sol, antes de poder ver as estrelas. Você quer estragar tudo assim, com um punhal? Quantos milhões de células trabalharam duramente para que você tivesse seu corpo, o quanto sua mãe sofreu para traze-la ao mundo, quanto tempo Deus gastou providenciando seu desenvolvimento espiritual depois carnal, para que você pudesse vir ao mundo? Quantas pessoas perderam o sono para trabalhar em um hospital quando nasceu, quando esteve doente? Quantas professoras deixaram os filhos doentes em casa para cuidar de você na escola? Acha que tudo isso seria em vão? Acha que tudo isso seria simplesmente para você poder chegar nesse dia e dizer : “ Não quero mais viver, essa vida é uma droga, hoje é um bom dia para por fim nela.” A vida não é um livro que se fecha a hora que quer e se põe de volta na estante.
As palavras dele entravam no meu coração como punhaladas, eu sentia o sangue ferver de vergonha de mim mesma, de indignação, de tristeza. Ele estava completamente certo e eu errada.
- Quem é você? Por que não aparece na minha frente? Por que não mostra seu rosto? Você me fala de coragem, mas não tem coragem de aparecer para mim. – Falei, alguma coisa tinha que ser dita, eu não tinha argumentos para tudo aquilo que ele havia dito.
- Não importa meu rosto, não importa meu nome, o que importa é o que eu vim dizer.
- Está errado, se tem algo para dizer, então diga olhando nos meus olhos.
- Você pode não gostar do que vai ver, melhor deixarmos como está, você me ouve.
- Você está brincando comigo?
- Eu não brinco, principalmente em serviço.
- Então está a serviço?
- Sim, estou.
- Então trabalha para alguém. – Falei levantando, tentando ver onde ele estava, com o punhal na mão, minha garantia de vida, ou de morte.
- Trabalho. Não tente fugir do foco da nossa conversa.
- Eu não converso com estranhos, principalmente estranhos que se escondem, não mostram o rosto.
- Que diferença faz o meu rosto?
- Como saberei se é um anjo ou o demônio?
- Não saberia pelo meu rosto, porque sendo um ou sendo outro, eu poderia me moldar da forma que eu quisesse.
- Boa resposta.
- Quer saber como saberia se sou do bem ou do mal?
- Quero.
- Analise as palavras que eu disse. Se eu fosse do mal, estaria em silêncio apenas esperando que você terminasse seu ato.
- Isso então deixa você na primeira categoria citada.
- Pode até ser.
- Então você trabalha para Deus?
- Sim.
- Ele existe mesmo? – Perguntei mais por provocação do que por duvida.
- Sim e ele acredita em você, tanto que me mandou aqui.
- Para evitar que eu me mate? Quanta honra a minha. Quer dizer que ele prefere que eu fique viva?
- Sim.
- Legal, então seu recado está dado, pode ir embora.
- Eu não vou embora.
- Vai sim, eu não chamei você, não convidei você pra entrar, então fora.
- Eu não sou um vampiro que precisa ser convidado para entrar na casa das pessoas.
- Se não aparecer na minha frente agora, eu é quem saio daqui e te garanto que não será pela porta, ou seja, você irá falhar na sua missão.
- Tudo bem, se quer assim...
As velas se apagaram, apenas a luz dos relâmpagos lá fora iluminavam meu cenário macabro.
Ele apareceu na minha frente, cabelos escuros arrumados jogados para trás, uma roupa azul clara, camisa e calça social.
- Não é tão mal quanto esperava. – Falei sentindo simpatia de imediato, mas ainda de arma em punho.
Ele deu um leve sorriso.
- Como pode ser tão cruel consigo mesma? Dê uma chance a você. – Falou e seus olhos pareciam brilhar no escuro.
- Eu devo ser realmente maluca a acreditar que Deus tenha mandado você por mim. Eu não mereço... – Falei sentindo um nó na garganta, como se fosse chorar a qualquer momento.
- Não precisa chorar, não sou nada demais, apenas quero que compreenda a mensagem sua vida é preciosa e há muito em seu caminho para ser feito. Você jamais será um simples vegetal, apenas deve deixar que o mundo chegue até você e você chegue até ele.
- Simples assim. – Falei indignada comigo mesma.
- Nada é simples. – Ele respondeu compreensivo.
- Eu sei... – Comecei a chorar, aquilo era um erro, tudo era um erro. Porque eu tinha que repetir os erros tantas vezes?
- Chore o quanto quiser, isso limpará sua alma e dará forças para você recomeçar. Quando a chuva passar um mundo novo estará à sua espera do lado de fora da janela. Basta que saiba ver e ouvir o que se preparou para você.
- Não sei se irei conseguir, mas prometo tentar. – Falei baixando os olhos, quando olhei novamente ele não estava mais lá.
- Você é muito mais especial do que julga ser. Lembre-se sempre que o mundo espera por você.
Senti uma mão acariciar meus cabelos, mas não havia ninguém ali.
- Pelo menos me diga seu nome antes de ir. Assim saberei quem me salvou.
- O meu nome não importa, me chame do jeito que preferir.
- Eu verei você novamente?
- Eu sempre estive e sempre estarei ao seu lado.
- Mesmo?
- Mesmo, algumas vezes você vai esquecer de mim, mas eu sempre estarei aqui por você.
- Obrigada. – Agradeci pensando em uma prece.
Uma sensação gostosa se apoderou de mim como se grandes asas me guardassem, uma suave brisa passou no meu rosto, como um beijo.
A tempestade parou e eu ainda tinha meus olhos fechados, sentindo-me reconfortada nas asas de um anjo.
E tudo se transformou.
Acredito que é desnecessário dizer que com o sofrimento se cresce, deve ser por isso que os grandes homens geralmente tiveram grandes catástrofes em suas vidas.
Olhando para a janela e vendo o dia chuvoso e frio lá fora, cinza como a cortina de fumaça que habitava minha alma naqueles dias solitários, eu me deparava com a imagem de mim mesma refletida no vidro da janela. Aquela forma humana decadente e triste seria eu? Olhos inchados e vermelhos, como um zumbi sem rumo. Será que uma prece seria o suficiente para afastar meus medos e as minhas inseguranças? E se para esse medo de mim mesma não pudesse haver cura. Quem poderia me proteger de mim mesma? Eu seria meu próprio algoz? Meu júri, meu juiz e meu executor? Que pecados tão abomináveis teria eu cometido para me julgar assim tão cruel e sem perdão? Por que me julgava insistentemente sem ter qualquer motivação para dar-me a própria absolvição?
Não precisava da liberdade do corpo, apenas a liberdade da alma, apenas uma razão para acreditar que talvez eu tivesse uma chance, apenas uma para modificar aquilo que não poderia ser modificado. Apenas uma chance para poder arrancar de dentro de mim aquilo que já não me pertencia mais. A autorização para simplesmente destruir o que incomodava o que fazia mal, o que se enraizou e fez com que tudo se transformasse em dor, em solidão, em sofrimento.
Automaticamente tentando encontrar saídas para uma estrada de mão única, será que as jornadas seriam tão curtas assim? Tanta espera por alguma coisa realmente interessante na minha vida, mas jamais acontecera ou chegaria a acontecer. Será que viver seria simplesmente um ato breve de inspirar e expirar?
Algumas pessoas eram destinadas, uma série de explicações lógicas para o fato de que algumas eram merecedoras de vidas importantes, cheias de aventuras e histórias para contar para seus próprios filhos, depois netos. Uma vida interessante, capaz de fazer das menores insanidades, as mais divertidas aventuras. Possível mesmo seria que alguém acordasse de manhã e não pensasse em dormir novamente, porque assim era eu, acordando de manhã já esperando pela noite para dormir novamente.
Por quê?
Porque dormir era a minha maior aventura, o momento em que me encontraria livre de tudo o que fazia mal. Eu simplesmente vivendo, aventuras, romances, diversas vidas, diversas épocas. Uma coleção de fatos altamente atraentes. Fuga da realidade? Talvez sim, porque a realidade sempre fora um vidro fumê, sem qualquer atrativo.
O silêncio era tanto que eu podia ouvir o som das minhas lágrimas caindo sobre o papel no chão. Fotos, recordações, bilhetes, onde estariam as pessoas do meu passado? Lembrariam de mim? Ou apenas em suas vidas fui um simples ponto de um i?
Olhei novamente para o punhal no chão à minha frente, escolhido cuidadosamente, não poderia haver falhas, aquele era um bom dia para dormir profundamente, viver no mundo dos sonhos por toda a eternidade, sem dor, sem solidão, apenas vivendo no mundo colorido e divertido da imaginação. A dona da loja nem imaginara o que acabara de fazer ao mostrar-me aquele punhal dourado com duas pedras vermelhas, imitando dois olhos de rubi, era perfeita, altamente afiada e pontiaguda, seriam apenas dois cortes, apenas dois e a libertação.
Testei-o cortando um pedaço de papel, sim, ele era o escolhido, assim como o dia. Ninguém sentiria muito a minha falta mesmo. Minha mãe, com certeza, teria uma crise de loucura, mas isso duraria apenas algum tempo, depois acabaria se conformando, meu pai também, o restante das pessoas que me conhecia, iriam ao velório, falariam de mim, ou talvez apenas exclamassem algumas poucas palavras de fingida comoção, depois iriam embora viver suas vidas e em menos de uma semana, eu apenas existiria por uma inscrição em uma lápide fria e sem graça, assim como fora minha vida.
Peguei o punhal cuidadosamente, como uma grande relíquia, estava preparado, juntamente com a bacia de água, assim não haveria tanta sujeira, não queria uma cena macabra, nem aterrorizante, queria apenas dormir. A camisola também escolhida, branca, assim ficaria com um rosto mais angelical, ou talvez porque eu havia sempre guardado aquela camisola de renda e cetim branca para uma noite especial que nunca chegara, aquele era o momento especial, o momento de dormir para sempre.
Ouço a chuva recomeçar forte lá fora, um arrepio percorre a minha espinha, seria o céu chorando pelo meu ato? Seria um aviso de que eu iria direto para o inferno como sempre pregara a igreja? Pouco me importava, o inferno pelo menos deveria ser mais divertido do que a minha vida, qualquer coisa seria melhor do que viver como um simples vegetal. As velas acesas à minha volta de repente dançavam como se um vento as acariciasse, como se o barulho da chuva fosse uma doce música que as fazia dançar como bailarinas. O cheiro da parafina queimada enchia os meus pulmões, enquanto eu esperava o momento exato para praticar o último ato de uma vida.
- Sabe qual é seu maior problema? – Ouvi uma voz desconhecida masculina falando no quarto, meu coração disparou, quem poderia ter entrado no meu quarto? Não havia barulho, tinha a certeza que a porta da sala estava trancada. Eu não tinha coragem de me mexer, estava apavorada. Não esperava que alguém estivesse ali comigo, principalmente alguém que eu não conhecia.
- O que foi, está com medo? De quê? Para quem está prestes a cometer esse ato que você está, o medo não deve fazer parte. – A voz falou novamente.
Fechei os olhos, como se isso pudesse me proteger. Um gesto inconsciente de proteção, assim como fazemos quando crianças que fechamos os olhos e achamos que estamos bem escondidos e que nossos pais não irão nos encontrar.
- Quem é você? – Perguntei, quase que em sussurro. As palavras saiam com dificuldade.
- Isso importa? – Ele perguntou com a voz suave, mantendo sempre o mesmo tom.
- Importa.
- Sabe qual é seu maior problema? – Repetiu a primeira pergunta novamente.
- Quem é você? – Perguntei novamente, agora com um pouco mais de força, se ele quisesse fazer alguma coisa ruim, já teria feito. Abri os olhos, mas sem coragem de olhar para trás.
- Seu maior problema é ter tanta pena de si mesma que fica cega diante das bênçãos que acontecem a você.
- Quem é você para entrar na minha casa e vir falando de mim? – Falei olhando para trás, olhando pelo quarto, mas não havia ninguém, isso me apavorou, principalmente quando as velas novamente mexeram todas para o mesmo lado, uma brisa que vinha de lugar algum passou, e juntamente com as velas meus cabelos balançaram. Olhei diretamente para a janela, ela estava fechada. Segurei o punhal com força na minha mão. O que antes serviria para por fim à minha vida, agora seria minha arma de proteção.
- Por que não faz o que quer fazer? Eu vou assistir e ver o quanto é covarde. Achei que você fosse mais forte.
- Eu não quero testemunhas, além disso, você é apenas a minha imaginação, não passa da minha consciência pregando peças, os conceitos incluídos em minha mente por uma sociedade e por uma religião hipócrita. Eu não acredito mais em nada a não ser em mim mesma.
- Não parece. Sabe o que eu penso? Que tem tanto medo da sua potencialidade que acha que fugindo não será cobrada, mas está enganada, desistindo da luta, será apenas uma desertora e desertores não são bem vistos, sabe por quê? Porque são covardes.
- Eu não sou covarde. Se eu fosse, eu não teria coragem de me matar.
- Morrer é fácil, difícil é viver.
- Você quem diz, eu sei o que é viver assim, como um vegetal.
- Vegetal? – Senti que ele sorriu. – Você não é um vegetal. Você é perfeita, tem saúde, é até bonita, é inteligente. Apenas tem pena de si mesma, o que a deixa sem qualquer motivação para viver. O mundo está lá fora, você é quem se tranca dentro de você mesma. Você tem as respostas, ainda não aprendeu a fazer as perguntas, esse é o problema.
Pensei por alguns instantes sobre o que ele disse. Ele teria razão? Eu estava perdendo realmente a razão, estava conversando com alguém que não existia.
- Você me fala de coragem, então porque não se mostra? Quem é você e porque está aqui? – Perguntei em tom desafiador.
A voz ficou muda por alguns instantes, mas eu podia ouvir sua respiração. As velas novamente dançaram, e dessa vez, eu já não tinha mais medo.
- Estou aqui por você. – Respondeu, mantendo sempre um tom macio na voz.
- Por mim? Eu não chamei ninguém.
- Não mesmo?
- Não.
- Deixe que eu veja você, se isso for uma brincadeira, deixe-me fazer o que estou pronta para fazer.
- Ainda quer fazer?
- Quero. – Falei, mas a minha voz, não saiu tão forte quanto eu esperava, estava vacilante. E não havia mais tanta convicção.
- Então ainda se julga uma coitadinha? Pobrezinha, ninguém a ama, não tem amigos, não tem motivação. Que vida cruel! – Zombou, mesmo mantendo o mesmo tom calmo na voz.
- Isso mesmo, eu sou um zero a esquerda.
- Você já pensou em amar as pessoas primeiro? Já pensou em ajudar as pessoas primeiro antes de querer ajuda? Quantas pessoas estão por aí precisando de um abraço, de uma mão amiga, quantas pessoas precisam de um pedaço de pão, não o pão material, mas o pão do amor. O quanto você pode fazer pelos outros ao invés de ficar aí vegetando. Você tem duas mãos, duas pernas, quantos não dariam tudo para poder andar, para poder abraçar alguém! Quantos dariam qualquer coisa para poder enxergar apenas de um olho, ou mesmo poder enxergar só um pouquinho a luz. Quantos sonham em poder falar uma palavra, ou mesmo ouvir o barulho de uma chuva, o som de um sorriso. Você me fala de vegetar, mas quantos estão nos leitos dos hospitais imóveis em coma querendo que seus corpos reajam para voltar a viver, ou mesmo que estão acordados, mas por algum motivo seus corpos não atendem e vivem dependendo das outras pessoas para tudo, porque a única coisa que podem fazer é fechar e abrir os olhos.
- Mas devem ter feito alguma coisa para Deus os punir. – Falei sentindo meu coração doer pelo que ele havia falado, eu não havia pensado nisso. Senti vergonha do que eu acabara de dizer.
- Deus não pune os homens, eles mesmos se punem, ou se escondem atrás de erros como o que você quer cometer. A vida é uma dádiva, um presente, uma chance de fazer as coisas darem certo. Quantos não têm essa chance? Quantos são abortados antes de nascer, antes de poder conhecer o nascer do sol, antes de poder ver as estrelas. Você quer estragar tudo assim, com um punhal? Quantos milhões de células trabalharam duramente para que você tivesse seu corpo, o quanto sua mãe sofreu para traze-la ao mundo, quanto tempo Deus gastou providenciando seu desenvolvimento espiritual depois carnal, para que você pudesse vir ao mundo? Quantas pessoas perderam o sono para trabalhar em um hospital quando nasceu, quando esteve doente? Quantas professoras deixaram os filhos doentes em casa para cuidar de você na escola? Acha que tudo isso seria em vão? Acha que tudo isso seria simplesmente para você poder chegar nesse dia e dizer : “ Não quero mais viver, essa vida é uma droga, hoje é um bom dia para por fim nela.” A vida não é um livro que se fecha a hora que quer e se põe de volta na estante.
As palavras dele entravam no meu coração como punhaladas, eu sentia o sangue ferver de vergonha de mim mesma, de indignação, de tristeza. Ele estava completamente certo e eu errada.
- Quem é você? Por que não aparece na minha frente? Por que não mostra seu rosto? Você me fala de coragem, mas não tem coragem de aparecer para mim. – Falei, alguma coisa tinha que ser dita, eu não tinha argumentos para tudo aquilo que ele havia dito.
- Não importa meu rosto, não importa meu nome, o que importa é o que eu vim dizer.
- Está errado, se tem algo para dizer, então diga olhando nos meus olhos.
- Você pode não gostar do que vai ver, melhor deixarmos como está, você me ouve.
- Você está brincando comigo?
- Eu não brinco, principalmente em serviço.
- Então está a serviço?
- Sim, estou.
- Então trabalha para alguém. – Falei levantando, tentando ver onde ele estava, com o punhal na mão, minha garantia de vida, ou de morte.
- Trabalho. Não tente fugir do foco da nossa conversa.
- Eu não converso com estranhos, principalmente estranhos que se escondem, não mostram o rosto.
- Que diferença faz o meu rosto?
- Como saberei se é um anjo ou o demônio?
- Não saberia pelo meu rosto, porque sendo um ou sendo outro, eu poderia me moldar da forma que eu quisesse.
- Boa resposta.
- Quer saber como saberia se sou do bem ou do mal?
- Quero.
- Analise as palavras que eu disse. Se eu fosse do mal, estaria em silêncio apenas esperando que você terminasse seu ato.
- Isso então deixa você na primeira categoria citada.
- Pode até ser.
- Então você trabalha para Deus?
- Sim.
- Ele existe mesmo? – Perguntei mais por provocação do que por duvida.
- Sim e ele acredita em você, tanto que me mandou aqui.
- Para evitar que eu me mate? Quanta honra a minha. Quer dizer que ele prefere que eu fique viva?
- Sim.
- Legal, então seu recado está dado, pode ir embora.
- Eu não vou embora.
- Vai sim, eu não chamei você, não convidei você pra entrar, então fora.
- Eu não sou um vampiro que precisa ser convidado para entrar na casa das pessoas.
- Se não aparecer na minha frente agora, eu é quem saio daqui e te garanto que não será pela porta, ou seja, você irá falhar na sua missão.
- Tudo bem, se quer assim...
As velas se apagaram, apenas a luz dos relâmpagos lá fora iluminavam meu cenário macabro.
Ele apareceu na minha frente, cabelos escuros arrumados jogados para trás, uma roupa azul clara, camisa e calça social.
- Não é tão mal quanto esperava. – Falei sentindo simpatia de imediato, mas ainda de arma em punho.
Ele deu um leve sorriso.
- Como pode ser tão cruel consigo mesma? Dê uma chance a você. – Falou e seus olhos pareciam brilhar no escuro.
- Eu devo ser realmente maluca a acreditar que Deus tenha mandado você por mim. Eu não mereço... – Falei sentindo um nó na garganta, como se fosse chorar a qualquer momento.
- Não precisa chorar, não sou nada demais, apenas quero que compreenda a mensagem sua vida é preciosa e há muito em seu caminho para ser feito. Você jamais será um simples vegetal, apenas deve deixar que o mundo chegue até você e você chegue até ele.
- Simples assim. – Falei indignada comigo mesma.
- Nada é simples. – Ele respondeu compreensivo.
- Eu sei... – Comecei a chorar, aquilo era um erro, tudo era um erro. Porque eu tinha que repetir os erros tantas vezes?
- Chore o quanto quiser, isso limpará sua alma e dará forças para você recomeçar. Quando a chuva passar um mundo novo estará à sua espera do lado de fora da janela. Basta que saiba ver e ouvir o que se preparou para você.
- Não sei se irei conseguir, mas prometo tentar. – Falei baixando os olhos, quando olhei novamente ele não estava mais lá.
- Você é muito mais especial do que julga ser. Lembre-se sempre que o mundo espera por você.
Senti uma mão acariciar meus cabelos, mas não havia ninguém ali.
- Pelo menos me diga seu nome antes de ir. Assim saberei quem me salvou.
- O meu nome não importa, me chame do jeito que preferir.
- Eu verei você novamente?
- Eu sempre estive e sempre estarei ao seu lado.
- Mesmo?
- Mesmo, algumas vezes você vai esquecer de mim, mas eu sempre estarei aqui por você.
- Obrigada. – Agradeci pensando em uma prece.
Uma sensação gostosa se apoderou de mim como se grandes asas me guardassem, uma suave brisa passou no meu rosto, como um beijo.
A tempestade parou e eu ainda tinha meus olhos fechados, sentindo-me reconfortada nas asas de um anjo.
E tudo se transformou.
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Todos nós temos anjos cuidando o tempo todo de nós, basta estarmos atentos aquilo que ele tem a nos dizer.
Beijos e boa semana!
Um comentário:
Já falei que achei lindo? Acho que não, né? Mas falo agora. Achei lindo e me identifiquei com as palavras motivadoras dele, não sou um anjo, obviamente, mas se eu quisesse salvar uma vida saudável de fazer besteira, enveredaria pelo caminho da verdade, da motivação. Adorei, Blue *-*
muito bom mesmo, beijos ;*
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